Editorial - O Grupo Galpão, o Centro Cultural Galpão Cine Horto, a cidade e o mundo
Resumo
Editorial
João Antonio de Paula
Professor Titular do Departamento de Ciências Econômicas
Gustavo Britto
Editor
Neste número, a Nova Economia conclui o ciclo de homenagens ao teatro realizado nas coletâneas de arte dos números de 2021. Esse registro marca também o fim de mais um ano de pandemia, novamente um período extremamente conturbado com a combinação continuada das crises política, econômica e sanitária. Contudo, a passagem de ano também vem acompanhada da esperança da possibilidade de transição para novos caminhos.
A última coletânea do ano traz imagens históricas do Grupo Galpão. Além do registro histórico da trajetória do Grupo, que em 2022 completa 40 anos, trata-se de uma ilustração contundente da resiliência da cultura, da arte e dos artistas que procuram o público e de um processo permanente de mudança, reinvenção e construção.
A presença do Grupo Corpo nesta edição é também uma auspiciosa coincidência de datas. Em 2022 a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) completa 95 anos de existência, durante os quais a cultura sempre teve papel central. O que se comemorará em setembro de 2022 é ampla e justamente reconhecido pela decisiva contribuição dessa instituição de ensino para o desenvolvimento do estado e do país, dos variados campos de sua atuação. Agora mesmo a UFMG tem exercido importante papel no combate à atual pandemia.
Sua atuação nunca se limitou à formação de recursos humanos e à produção de conhecimento, destacando-se também na inovação tecnológica e por significativa atuação no campo da extensão universitária. Entre seus orgulhos está o de ter tido como alunos ou como professores alguns dos maiores nomes da literatura brasileira – Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa, Pedro Nava, Emílio Moura, além de outras personalidades importantes.
Também digna de registro é a importância da UFMG, e de seu Festival de Inverno, na atualização da vida cultural de Minas Gerais e do Brasil, em variadas dimensões, destacando-se aí o seu papel indutor do surgimento de grandes grupos artísticos como o Teatro de Bonecos Giramundo, o Grupo Uakti, o Grupo Corpo, o Grupo Galpão.
Desse processo participaram várias unidades da Universidade, o que é de se esperar. Mais inusual é que também a Faculdade de Ciências Econômicas tenha se destacado não só como centro de ensino e pesquisa em ciências sociais aplicadas, mas também por permanente atuação no campo do planejamento e do desenvolvimento econômico e social, e por ampla abertura para as questões emergentes da realidade social, em perspectiva interdisciplinar. Por isso, não é incomum que seus alunos, seus professores, seus pesquisadores, ao lado de seus campos específicos de atuação tenham se dedicado à literatura, ao cinema, ao teatro, à música. Essas permanentes e ricas interações culturais praticadas nessa Faculdade estão emblematicamente representadas no fato de que seu primeiro diretor, depois de sua refundação em 1945, tenha sido o poeta de mérito que é Emílio Moura.
Desse modo, não há qualquer surpresa que ela mantenha rica cooperação e amizade com importantes agentes da vida cultural mineira, de que é exemplo o Grupo Galpão. Entre seus fundadores está um ilustre ex-aluno da Faculdade, o Chico Pelúcio, que tem sido responsável por rica convivência de que muito nos orgulhamos.
A revista Nova Economia é prova do que se disse aqui, sobre o inegociável compromisso da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG com a interdisciplinaridade, com o sentido emancipatório de sua atuação.
O Grupo Galpão, o Centro Cultural Galpão Cine Horto, a cidade e o mundo
Chico Pelúcio
Integrante do Grupo Galpão e Diretor Geral do Galpão Cine Horto
Participei de um amontoado de jovens universitários, em 1980, que se reuniu para desenhar um projeto utópico de ter um “galpão” no qual as artes, os afetos e suas diferentes expertises convivessem harmônica e horizontalmente na esperança de construir um novo país que emergia do período ditatorial.
A ingenuidade própria da juventude e a urgência dos afazeres da vida adulta fizeram naufragar o sonho dos jovens arquitetos, artistas plásticos, psicólogos, poetas, atores e diretores de teatro. Pouco tempo depois, através do teatro, essa chama renasce, e o que era utopia encontra atalhos para se tornar realidade.
Atores e atrizes que participaram de uma experiência com dois diretores do Teatro Livre de Munique em Belo Horizonte fizeram renascer a aventura fracassada, na época, capitaneada pelo arquiteto e diretor teatral João Marcos Machado Gontijo. Entre eles estava Eduardo Moreira, que estivera naquele “amontoado de jovens” trazendo consigo os desejos congelados daquele primeiro encontro, que deixou somente um Estatuto e a Associação Galpão criada e registrada, que posteriormente daria nome ao Grupo.
Foi então que Eduardo, Wanda, Teuda, Fernando Linares, Beto Franco, entre outros atores, através da montagem do primeiro espetáculo E a noiva não quer casar, em 1982, se propuseram a dar continuidade aos ensinamentos deixados pelos alemães. Sem que soubessem claramente, estava assentado o primeiro tijolo da nossa trajetória. Trajetória essa que pretendia criar condições para um trabalho contínuo, tanto no aspecto artístico como de produção.
O teatro de rua, com sua irreverência e ousadia de ocupar os espaços públicos de Belo Horizonte nesse período transitório da ditadura, muito rapidamente conquistou seu público, que nos acompanhará nos anos seguintes. Por outro lado, desperta o interesse da mídia e mais do que isso, faz nascer nos corações daqueles artistas uma paixão pelo teatro de rua que se tornará motivo de nossa existência por longos anos até recentemente.
Belo Horizonte sempre foi a casa para onde voltamos das nossas viagens, mas nossos olhos sempre buscaram o “além-montanhas”. Assim, com as Minas Gerais dando identidade aos nossos espetáculos e a nossa “Esmeralda” (um carro Veraneio que transportava atores, cenários e figurinos das nossas peças), o Grupo Galpão nos seus primeiros 10 anos foi conquistando as periferias, o interior de Minas, outros estados e até mesmo onde “Judas perdeu as botas”, e sem botas, mas com pernas-de-pau, lá estávamos nós ocupando praças e esquinas, inaugurando o teatro feito ao ar livre para gente que nunca tinha visto a encenação de uma peça. Lembro que ainda hoje são mais de 70% das cidades do Brasil que não têm teatro e que a casa de espetáculo e o teatro de rua são as únicas possibilidades de interiorização e democratização de acesso a essa arte. Oxalá o poder público percebesse essa realidade.
Foi uma época ligada à cultura popular com nosso olhar voltado para um Brasil do interior, desigual, que se divertia e se emocionava em ver uma encenação teatral pela primeira vez. Esse período foi coroado com a montagem de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, que, segundo o diretor Gabriel Villela, seria um espetáculo para o sertão de Minas. Foi uma bênção dos deuses do teatro, pois o espetáculo, além dos sertões, levou-nos a boa parte da Europa Ocidental, a toda a América Latina e aos Estados Unidos.
O Grupo Galpão se consolidava como uma das companhias de teatro mais importantes do país e, talvez, a que mais viajava pelo interior do Brasil. A visibilidade conquistada com Romeu e Julieta e depois com Rua da Amargura, também em parceria com Gabriel Vilella, resultou em convites que vinham do interior do país, das capitais e dos festivais internacionais.
Em 1994, esse sucesso desperta a atenção do Banco Crédito Real de Minas Gerais, que se associa ao Grupo explorando o conceito de que é possível se chegar a excelência mesmo diante da adversidade. Assim, o Banco conhecido como Credireal, adotando o mesmo modelo de patrocínio de manutenção que a Shell oferecia ao Grupo Corpo, abraçou o Grupo Galpão, financiando nossa estrutura operacional, nossas montagens e nossa circulação por Minas Gerais e por todo o país. Foi o primeiro patrocínio no Brasil nessa modalidade a um grupo de teatro. Infelizmente, essa situação durou apenas pouco mais de dois anos, devido à extinção do Banco.
Na segunda metade da década de 1990 fomos obrigados a rever nossa estrutura de produção e sobrevivemos basicamente da venda de espetáculo. No início dos anos 2000, a Petrobras assume o patrocínio do Grupo Galpão junto a algumas outras poucas iniciativas na categoria de “projetos especiais”. E o melhor, foi um patrocínio integral que cobria a manutenção, a criação e a circulação dos espetáculos. Junto a essa boa-nova, vieram nossa segunda ida a Londres para uma temporada no Globe Theatre, em Londres, a criação do Centro Cultural Galpão Cine Horto, as direções internas de seus próprios atores, a parceria com o Cacá Carvalho na montagem do Partido – documentário sobre o Galpão, dirigido por Kika Lopes e André Amparo –, a aproximação com Paulo José, que futuramente veio a dirigir dois dos nossos espetáculos. Foi um momento muito rico e de muita esperança, em que tivemos muitos avanços, tanto na estrutura de gestão como nos processos e resultados criativos do Grupo. Um período de equilíbrio entre as direções convidadas, com abertura para direções internas.
A primeira década do novo século foi de muitas produções e muitas viagens, mas, acima de tudo, uma fase de muita esperança. O Galpão Cine Horto se consolidou nesse período, graças ao patrocínio exclusivo da Petrobras ao Grupo Galpão, o que permitiu ao Centro Cultural buscar outros parceiros sem concorrer com o próprio Grupo. O país experimentava, talvez, a melhor gestão para a área cultural durante o governo Lula.
Portanto, o final do século passado e início deste século foi um período de avanços, conquistas, criações, grandes viagens, diretores importantes e, por que não dizer, salários dignos para vivermos e trabalharmos com tranquilidade na nossa arte.
Já no governo Dilma a cultura começa a perder espaço, sendo usada no seu primeiro mandato como moeda de troca política. Já no primeiro dia do segundo mandato a verba da cultura foi reduzida ao menor orçamento já visto na história, levando o MinC e a Funarte à imobilização financeira. Foi um período de muito verbo, pouquíssima verba e nenhuma ação.
Mesmo com a Petrobras dando sinal de diminuição dos financiamentos à cultura, o que poderia comprometer o nosso planejamento e até nossa sobrevivência, o Galpão e o Galpão Cine Horto apostavam no crescimento de suas ousadias e de suas equipes. O Galpão pela primeira vez se propõe a montar dois espetáculos quase ao mesmo tempo dividindo seu elenco. O projeto era mergulhar na obra de Anton Tchekhov, de modo que uma parte dos atores montou o texto dramatúrgico Tio Vânia, com direção de Yara de Novaes (a primeira mulher a dirigir o Grupo) e outra parte mergulhou nos contos do autor, dirigidos pelo russo radicado em Berlim, Jurij Alschitz. Com esse projeto, que se chamou “Viagem a Tchekhov”, tentamos uma nova forma de produzir, respondendo a algumas demandas criativas e de produção, entre elas a ideia de dividir o grupo em dois elencos para que houvesse um revezamento, permitindo, com isso, certo descanso. Havia também o desejo de trabalhar com um diretor internacional, bem como atender diferentes interesses artísticos dentro do Grupo.
Se por um lado o Grupo Galpão se empenhava em montar espetáculos e viajar com a proposta de ampliar o seu mercado de trabalho, renovar e aumentar seu público, ao mesmo tempo, as viagens eram uma fonte potente para se estabelecerem novos contatos. E em outra via, o Galpão Cine Horto se ocupava de fincar o pé em suas ações em Belo Horizonte como centro de formação, experimentação, memória e fomento do teatro. O fato é que com o decorrer do tempo os projetos do Galpão Cine Horto despertaram o interesse de grande parte do país, atraindo artistas de muitos estados.
Assim, estabeleceu-se uma “dobradinha” muito interessante, principalmente para Belo Horizonte, pois de um lado estava o Galpão levando consigo o nome da cidade “mundo afora”, por outro, o Galpão Cine Horto atuando nas entranhas da capital.
Mas para o mundo da educação, da cultura e da arte, especificamente do teatro, nunca as coisas foram fáceis. As conquistas acontecem em avanços com momentos de raros “alinhamentos das constelações”.
Dando sequência à crise instaurada em 2014, veio o golpe que trouxe de presente Temer e, depois, Bolsonaro. Houve primeiro o desmantelamento orçamentário do governo Dilma, depois a tentativa da extinção do Ministério da Cultura pelo Temer e, por fim, a sua extinção em 2018 pelo governo de Jair Messias Bolsonaro.
A tentativa de Temer em extinguir o MinC provocou uma incrível mobilização nacional fazendo com que ele voltasse atrás. O mesmo não aconteceu com Bolsonaro, que agiu sem resistência e sob certo silêncio da classe artística. Desde então, temos assistido à perseguição e ao boicote explícitos à arte e à cultura por parte do governo federal.
Como se não bastasse vem o vírus Covid-19 impondo a pandemia mundial, com a qual as artes cênicas vêm sofrendo por ser atividade de natureza essencialmente presencial. A frase mais falada por nós é: “o teatro foi o primeiro a fechar e será o último a abrir”. E assim aconteceu.
Nesse momento de total impossibilidade de trabalho, os artistas de teatro incrivelmente se reinventaram. No início, foi uma linda ação de solidariedade, quando muitos artistas atuaram como podiam nas plataformas digitais a fim de amenizar o impacto de uma população assustada e trancada dentro de casa. Música, teatro, aulas, lives, reuniões, festas de aniversário ao vivo ou gravadas inundaram nossos computadores e celulares na tentativa de propiciar ao cidadão algum entretenimento no confinamento.
No segundo momento, ao percebermos que a pandemia não seria resolvida rapidamente, passamos a buscar formas de sobrevivência, isto é, utilizar as plataformas digitais como ambiente de trabalho e remuneração. Nas artes cênicas, muita coisa foi produzida pelo teatro e pela dança, numa aproximação muito fecunda com o universo do audiovisual. Reinventamo-nos como foi possível, entretanto foram raras as experiências que obtiveram sucesso financeiro. Talvez a música, com seus astros, tenha tido melhor sorte financeira do que a artes cênicas. Do ponto de vista de linguagem, os que mais se aproximaram do teatro presencial foram os espetáculos ao vivo, que certamente serão outra opção para realizarmos trabalhos e ampliarmos nosso público. O nome disso? Teatro virtual, teatro on-line, teatro a distância...
Um acontecimento nacional e fundamental para existirmos vivos e com alguma esperança nesse período foi a agilidade da aprovação da Lei Aldir Blanc. Aqui em Belo Horizonte ela obrigou a Secretaria de Cultura, até então omissa e ausente, a se mobilizar para distribuir a verba oriunda da Aldir Blanc. O mesmo aconteceu com outros municípios e estados.
O Galpão se desdobrou e produziu muita coisa, tentando desesperadamente entender e achar caminhos para esse momento. Espero que essas experiências deixem boas alternativas para o Grupo no futuro. Quanto ao Galpão Cine Horto, em 2020 e 2021 realizamos todos os projetos previstos de forma on-line e ainda criamos a TV Galpão Cine Horto.
Neste momento em que escrevo, estamos sem saber se a variante Ômicron permitirá a volta dos teatros, ou se vamos ficar nessa eterna impossibilidade de planejar em médio prazo nesse vaivém de ondas epidêmicas.
O fato é que estamos aprendendo a viver day by day, a descobrir que os afetos próximos são muito importantes, que nossa saúde física e mental tem que ser preservada, que a empatia é mola mestra da amizade, do coletivo, do humanismo e até mesmo da democracia.
E para finalizar peço emprestado ao Caetano Veloso:
“Ser feliz
O melhor lugar é ser feliz
O melhor é ser feliz.
Onde estou
Não importa tanto aonde vou
O melhor é ter aonde (amor).”
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