Editorial - Um novo ponto de partida

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Resumo

Editorial: Um novo ponto de partida

Por Gustavo Britto, Editor da Nova Economia

  

Neste ano de 2021, a revista Nova Economia continua sua jornada para manter aberto, na área de economia, um espaço editorial acadêmico que privilegia a pluralidade de perspectivas teóricas, de linhas de pensamento e de agendas de pesquisa. Os desafios são monumentais, mas existem sinais positivos no horizonte.

Em 2020, com a aceleração do processo de destruição generalizada das instituições, a efeméride dos 30 anos da Nova Economia foi marcada pelo desafio de garantir sua própria existência. Em meio ao aprofundamento do corte de recursos para os serviços públicos, e com o progressivo distanciamento físico imposto a todos pela pandemia, a equipe da revista se desdobrou para manter vivo o fluxo de trabalho editorial, da submissão de manuscritos originais à publicação de artigos revisados e diagramados.

Durante esse ano, com muito esforço, foram publicados 36 artigos em três números regulares, e outros seis no Número Especial. Desse total, 14 foram em língua inglesa, refletindo o permanente empenho de internacionalização do periódico. Mesmo com o aumento significativo do número de submissões, o tempo total de publicação após submissão, parecer, revisões e publicação final foi reduzido de maneira significativa.

Contudo, como todos sabemos, estes tempos têm sido marcados pela prevalência do incomum, do anômalo, do esdrúxulo. É nesse ambiente que adentramos o segundo ano de uma crise sanitária provocada por uma pandemia que, no território nacional, se desdobrou desacorrentada, levando ao aprofundamento das crises econômica e política. No esteio de uma lógica política de terra arrasada, se acumularam, inacreditavelmente, mais de cinco centenas de milhares de vidas perdidas, dezenas de centenas de milhares de convalescentes e dezenas de milhões de desempregados.

Juntamente às vidas, estão sob permanente ameaça os mais caros valores da humanidade. A democracia, as liberdades individuais, a ciência, a cultura e as artes têm sido objeto dos mais abjetos ataques. Nesse quadro, não é surpresa para autores e autoras, leitores e leitoras da revista Nova Economia que a economia, em todas as suas diferentes faces, tenha se deteriorado enormemente.

Simbolicamente, no penar da cultura, foi reservado ao teatro um tratamento particularmente cruel. Ao desalento econômico amplo e irrestrito, somou-se o distanciamento das pessoas. A crise atual, econômica e sanitária, desferiu seu mais duro golpe ao separar, friamente, artistas e público, fato que nem os mais graves desastres econômicos e institucionais da história conseguiram provocar.

Contudo a vida, a saúde, a ciência, a democracia, a cultura e as artes são resilientes. Resistem sempre, e vencem, eventualmente, o obscurantismo. Com o avanço da vacinação, embora lento, se descortina a esperança de novos dias, de novas lutas. Resistimos, resistiremos!

Para simbolizar e registrar essa luta permanente, a curadoria de arte da Nova Economia trará este ano registros da história do teatro mineiro. O teatro, que enfrentou e sobreviveu a tantos outros momentos cruéis da nossa história, e que a todos sempre deu alento na escuridão, acompanhará os artigos que serão publicados em 2021.

Neste primeiro número do ano, para começar, a revista traz uma seleção de fotos que ilustram parte da trajetória do grupo de teatro Ponto de Partida, que no presente ano comemora 40 anos de existência.

Ao longo dessa trajetória, o Ponto de Parida produziu 40 montagens, apresentou-se em todos os estados brasileiros (falta, apenas, o Piauí!), além da África, Europa e América do Sul. Até o início da crise econômica, agravada pela pandemia, o Grupo recebia uma média de 36 mil pessoas por ano em suas diversas atividades culturais, educacionais, sociais e ambientais.

Essas ações são conduzidas no âmbito de diversos projetos, entre os quais o Núcleo Permanente de Teatro, Pesquisa e Produção, o projeto Bituca: Universidade de Música Popular – que tinha o maior número de inscrições por vaga de todos os cursos de Música das universidades públicas do Brasil, tendo recebido 190 alunos, de 62 cidades, de 10 estados e de dois países– e o Coro Meninos de Araçuaí, em parceria com a ONG Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, com 22 anos de trabalho e participação de mais de 425 crianças e adolescentes. Destaca-se, ainda, a Estação Ponto de Partida, com jardins de 2 mil m2, que abriga a Casa do Ponto, o projeto Bituca: Universidade de Música Popular e a Casa Palavra/Café, além de uma reserva ambiental e cultural de 22 hectares.

É todo esse esforço, essa dedicação e esses sonhos que estão por trás das imagens selecionadas para este fascículo.

Que este ano seja marcado pelo avanço da vacinação, pelo recomeço da vida, pela reabertura da economia, pela valorização da democracia, da ciência, pela elevação da cultura, das artes e do teatro. Que 2021 seja um novo ponto de partida!

 

 

O Ponto de Partida

Por Regina Bertola, Diretora Artística do Ponto de Partida.

 

“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia...”

 

A ditadura agoniava mesmo com leitos na UTI e kits para intubação. Cantávamos Chico Buarque alto e bom som, quase sem medo. Já podíamos assistir aos textos de Vianinha em palcos libertados. Todos nós celebramos a volta do irmão do Henfil. Diretas Já, exigíamos em multidões!

O Ponto de Partida nasceu aí. Um bando de jovens comprometidos em escrever uma nova história.

Anos de isolamento e autoritarismo nos ensinaram que era fundamental conquistar alianças e se organizar em fileiras. Armas? O poder de criar, a beleza, a arte, a poesia. Causa? Formar e fortalecer o espírito humano, o único capaz de derrotar as ditaduras e as pandemias.

Tomamos as ruas de assalto, e nossa pequena cidade floresceu em ininterrupta primavera! De passagem que era, entre o mar e as minas, virou destino. Artistas, intelectuais, escritores, economistas, espetáculos, shows, concertos, seminários. Bandas se formando, grupos de teatro, suplemento cultural, discussões, composições, proposições. Tudo era palco: cafés, bares, esquinas, escolas. Então, inventamos um grupo de teatro!

Aspirávamos Paris, mas sabíamos que seria encarapitados nas terras altas da Mantiqueira que cunharíamos nossa marca e definiríamos nossa rota. Nossa narrativa seria escrita em nossa língua. Nosso canto entoaria nosso povo: naturalmente musical, contraditório, mestiço. Nossa matéria? A vida e o ser humano, visitados pela delicadeza e a originalidade do nosso olhar. Linguagem? A que iríamos inventar. Instrumentos? A poética da beleza e da palavra.

Nesses 40 anos nossa obra viajou o Brasil e o mundo em longas asas estruturadas com raízes desencavadas.

Sempre acreditamos que há um plano de voo e uma conexão entre os milhões de estrelas penduradas em varais invisíveis, as pequenas sementes que guardam os jacarandás, as larvas feiosas que disfarçam improváveis borboletas, as escolhas e os motivos. Por isso, parece natural que o Grupo ocupasse a antiga fábrica de seda abandonada, invadida e perigosamente desfigurada.

Dezessete anos foram necessários para recuperar todos os casarões e restaurar a sóbria elegância de todo o seu conjunto arquitetônico. Apenas 15 dias levamos para plantar 20 mil mudas, numa barganha inusitada com o Inhotim, quando trocamos espetáculos por jardins.

Estava configurada a Estação Ponto de Partida. A memória recomposta para a escritura de novos feitos.

Ocupar uma edificação tornou palpável o que era intangível.

Somos uma plataforma por onde transitam artistas de todas as linguagens, aprendizes, grandes mestres, jardineiros, cozinheiros, produtores, crianças, anciões, toda qualidade de pessoa: comparsas. Fios de variadas cores e texturas que ofertam sua singularidade para a harmonia e a beleza da trama. Ponto a ponto, tecemos a diversidade dessa trama que algumas vezes se esgarça, periga romper, mas que se recompõe com grandes alinhavos de afeto e trabalho.

Respeitamos a loucura e o milagre. Damos licença para ousadias, experiências, transgressões, erros, descobertas. O trabalho é nossa ferramenta diária na busca por perfeição, e a alegria a medida para que essa busca seja um processo de aprendizagem coletivo e fraterno. Mesmo suspensos nesse circo de horrores em que estamos vivendo, temos a certeza de que o ser humano está equipado sofisticadamente para além de sobreviver, ser feliz!

Até fechar seus aparelhos culturais, em decorrência da pandemia, o Ponto de Partida era responsável diretamente pelo trabalho e formação de 260 pessoas, divididas e misturadas em seus vários programas.

Mantém 20 profissionais fixos em trabalho contínuo que inclui uma equipe técnica com preparadoras vocal e corporal, figurinistas, cenógrafos e engenheiros de som. Além disso, requer muitos serviços esporádicos de carregadores, camareiras, montadores, técnicos, transporte, hospedagem, alimentação, segurança, costureiras, aderecistas, fisioterapeutas.

Com a Bituca funcionando presencialmente, abrigava 14 profissionais, entre mestres, gestores e produtores. Numa cidade de 120 mil habitantes, sem indústrias, nos tornamos um empregador importante.

O Ponto de Partida criou, desenvolveu e sistematizou um método de gestão e produção que vem sendo estudado por vários profissionais. Adota a gestão compartilhada, com todas as decisões estruturais discutidas e aprovadas pelo Grupo. No entanto, as pequenas equipes setoriais têm autonomia na condução dos processos. Todos os membros do grupo exercem mais de uma função e todos podem ser convocados para ações coletivas. Consegue, com isso, manter um alto padrão de qualidade com custos reduzidos. Tem um programa de banco cultural que funciona como fundo de pensão. E, apesar de todas as crises, mantém um fundo de reserva e um pequeno fundo de investimento.

De que sentimos falta nesta pandemia? Como povo, da capacidade de nos construirmos e de nos protegermos enquanto nação. Como ser humano, se não da solidariedade, da inteligência ou do instinto de sobrevivência da espécie humana em perceber que só no cuidado com o outro haverá remissão. Como gente de teatro? Do burburinho da plateia, da expectativa do que há de vir exposta no corpo de cada um, da respiração suspensa, das gargalhadas, dos olhos brilhando, dos murmúrios de emoção, da cumplicidade, do frio na barriga, do aquecimento, da última passada de som, do palco vazio banhado de luz, dos abraços desejando – “Arrase!”, da alegria estridente com a notícia de que estamos lotados, do terceiro sinal, do prazer de ver as cenas se sucederem lindamente, dos aplausos, da sensação ímpar de que pulsamos com o mesmo coração.

O que queremos manter nos espaços que a pandemia nos obriga e nos oferece? A simplicidade da arte milenar dos contadores de história. A verdade de cada palavra. O rigor de cada gesto. A beleza de cada cena. O afeto na relação com nosso público. “A trégua entre cuidados”. O motivo de esperança.

Depois de 40 anos? Mantemos viva a nossa capacidade de nos indignarmos e de sonhar. A convicção de que a beleza e a arte são essenciais para a espécie humana. Que o nosso ato tenha o condão de transmutar nosso tempo histórico. Que não se pode desistir de portar pequenos ramalhetes de vagalumes, porque é fato: a escuridão morre de medo da luz!

Ah! Precisamos continuar cantando Chico Buarque alto e bom som!

 

 

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Publicado

2021-07-19

Como Citar

BRITTO, G.; BERTOLA, R. Editorial - Um novo ponto de partida. Nova Economia, [S. l.], v. 31, n. 1, 2021. Disponível em: https://revistas.face.ufmg.br/index.php/novaeconomia/article/view/7066. Acesso em: 21 nov. 2024.