CHAMADA DE TRABALHOS - DOSSIÊ TEMÁTICO "Trabalho sexual no Brasil: uma discussão sobre direitos, políticas e práticas"

2019-04-27

CHAMADA DE TRABALHOS


DOSSIÊ TEMÁTICO

Trabalho sexual no Brasil: uma discussão sobre direitos, políticas e práticas

EDITORAS ESPECIAIS

Ana Paula da Silva (UFF)
Andreia Skackauskas Vaz de Mello (AB Gestão em Mudança)
Clara Luisa Oliveira Silva (IFSP)
Letícia Cardoso Barreto (UFMG)


“Num momento em que se ataca fortemente os direitos de todas as pessoas trabalhadoras, nós seguimos na luta ainda por conquistar uns poucos direitos. Dentre eles o direito de existir para além dos guetos e das esquinas onde estivemos até aqui restritas. Neste momento, me parece que mais importante que lutar pela regulamentação da atividade, a luta contra o retrocesso é o que nos toma tempo – e neste sentido, estamos todas juntas com as outras trabalhadoras que, com a precarização dos direitos trabalhistas e a aprovação da terceirização irrestrita, estão sob o sério risco de ter quase os mesmos direitos trabalhistas que… isso mesmo, prostitutas. A luta portanto, minhas caras, não deve estar para nós como algo que acabe por nos fazer excluir umas às outras. Pelo contrário, que sigamos procurando os pontos de convergência em nossas lutas. É isso o que nos fortalecerá” (Prada, 2017).

Avanço do conservadorismo, enfraquecimento do estado democrático de direito, retrocessos no que se refere a uma agenda de políticas sociais e trabalhistas, violação dos direitos humanos, investidas de projetos higienistas e segregadores. Este é o cenário que tem sido (re)produzido de modo mais evidente desde o ano de 2016 no Brasil.

Nesta proposta que versa sobre o trabalho sexual, foi escolhido um trecho atribuído à Monique Prada, uma putativista, que reflete sobre os sentidos da luta pela regulamentação da prostituição nestes tempos tão difíceis. Nos interessa, de modo especial, discutir as práticas que conformam o exercício da prostituição, que politicamente, assumimos se constituir como um trabalho implicado pelas dinâmicas dos mercados do sexo e de economias sexuais, dinâmicas que, conforme Olivar e Garcia (2017, p. 147), referenciam “[...] a abrangência e não excepcionalidade dos vínculos explícitos e sistemáticos entre sexo, afetos e dinheiro”.

Quando se fala de mercados do sexo se faz referência aos fluxos de oferta e demanda de sexo que considera intercâmbios materiais e simbólicos, e não apenas aspectos que se organizam a partir de uma noção de economia de mercado ou das relações de cosumo, aquilo comumente caracterizado como “comércio”. Este esforço analítico de compreensão das dinâmicas dos mercados do sexo abre possibilidades para considerar as diferentes nuances da prostituição, e de outros intercâmbios que não se confunde com esta (Pisicitelli, 2005; 2016).

Tal como a noção de mercados do sexo, a ideia de economias sexuais intenta situar os intercâmbios sexuais e econômicos nos universos sociais mais amplos dos quais eles fazem parte, apesar das divergências teóricas sobre o que compõe estas economias e o alcance desses ditos universos sociais. Economias sexuais podem aduzir ao um conjunto de circulações sexuais que se vinculam a uma dimensão mais macro em emergem questões como humanitarismo, o turismo, o policiamento e o controle das fronteiras. Por outro lado, as economias sexuais podem ser discutidas em um espectro que considera um contexto de trocas de sexo por dinheiro, incluindo, por seu turno, o casamento (Pisicitelli, 2016).

A sexualidade é política, encerra uma miríade de desigualdades e modos de opressão (Rubin, 1993). Importa destacar este pressuposto na medida em que o mesmo se opõe a uma visão do sexo como algo natural e biológico e, portanto, fora dos limites do que é construído pela intervenção humana. Sabemos que a naturalização do sexo atua de maneira a ocultar as lutas políticas que sustentam as formas institucionais concretas da sexualidade.

Neste contexto, a sexualidade é classificada considerando um enquadramento que se baseia em um sistema hierárquico de valores sexuais. Em linhas gerais, segundo este sistema de valor sexual, que não escapa de uma lógica de funcionamento dicotômica, existe, de um lado, a sexualidade “boa”, “normal”, e “natural”, e por outro lado, a sexualidade “ruim”, “anormal” ou “não-natural”. A sexualidade associada aos adjetivos heterossexual, monogâmica, marital, reprodutiva e não-comercial é interpretada no âmbito do que é “bom”, “natural” e “normal”. De outro modo, quando se transgride estas regras e o sexo é homossexual, dito promíscuo, fora do casamento, não-reprodutivo ou comercial delineia-se aquilo que é “ruim”, “anormal” e “não-natural” (Rubin, 1993).

“A prostituição é uma instituição que serve à regulação das relações sociais de sexo”, escreve Pheterson (2009, p. 204) defendendo que, em dado contexto, comportamentos que não se identificam com determinadas práticas convencionalmente instituídas, são comportamentos vistos como transgressores, o que contribui para que as mulheres a eles associadas sejam classificadas a partir de denominações “prostituta”, “puta”. As mulheres são, portanto, classificadas e estigmatizadas, e a elas relegado um lugar de subalternidade.

O processo de estigmatização das prostitutas apresenta-se, portanto, como uma espécie de sanção pela transgressão de uma moralidade feminina relacionada à capacidade de reprodução, ao cuidado com a família. Além disso, a estigmatização das prostitutas cumpre uma função pedagógica na medida em que objetiva o controle das mulheres não prostitutas de modo que não se desviem da norma, e que exerçam seu papel naturalizado pelo gênero que as marcam (Juliano, 2005).

As disputas políticas acerca do trabalho sexual acontecem em diferentes espaços sociais, e isso tem implicações na conformação do estatuto legal da atividade no país. Desde o ano de 2002, a prostituição integra a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), assim, o exercício individual da prostituição não configura um crime, apesar de o Código Penal prever a facilitação ou favorecimento da prostituição como sendo ato de natureza criminosa. No Congresso Brasileiro, se destacam dois projetos de lei que encerram posicionamentos diferentes sobre a prostituição. Citamos o projeto de lei n.377/2011 do deputado federal João Campos, atualmente no Partido Republicano Brasileiro (PRB), do estado de Goiás, projeto aquele que propõe uma modificação do Código Penal (CP) a fim de tornar crimes as contratação e aceitação da oferta de serviços sexuais. Por seu turno, Jean Wyllis, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), do Rio de Janeiro, apresentou, no ano de 2012, o projeto de lei n.4211/2012, denominado “Gabriela Leite”, projeto que visa à regulamentação da atividade.

A discussão sobre o trabalho sexual não se faz também sem tensões no âmbito do movimento feminista. Apesar de compreendermos que o debate feminista acerca do trabalho sexual não se reduz a uma mera polarização de visões, isto é, existem muitas outras posições entre os ditos antagonismos, destacamos duas posições que influenciam em grande medida as teorias e práticas feministas. O chamado feminismo radical sustenta-se em uma perspectiva abolicionista ou neoabolicionista, que defende a ideia de que a prostituta precisa ser liberta e conscientizada sobre as práticas que a colocam em situações de violência, submissão e exploração (Wijers, 2004). Pateman (1993) e Legardinier (2009) são feministas que compartilham deste posicionamento. Outra vertente que se destaca é a que assume a prostituição como sendo um trabalho e a prostituta, neste caso, uma trabalhadora, uma sujeita política, uma sujeita de direitos, dentre estes, direitos sexuais e trabalhistas. Essa concepção laboral relaciona-se intimamente com a emergência e consolidação dos movimentos organizados de prostitutas nos últimos anos (Wijers, 2004). E para além do movimento organizado, entendo que a perspectiva laboral sustenta, em grande medida, o exercício do que Prada (2018) e Moira (2016) chamam de putafeminismo, isto é, um feminismo que não deslegitima as falas e demandas das prostitutas como historicamente alguns tipos de feminismo tem feito.

O objetivo desta proposta é refletir sobre os aspectos concretos e simbólicos que caracterizam o trabalho sexual, e como tais aspectos se articulam a diferentes modos de se fazer política em um campo em que estão em jogo direitos trabalhistas, direitos sexuais e direitos ao corpo. Realizar esta discussão no âmbito de um periódico de Administração representa uma tentativa de evidenciar uma problemática que, apesar de ser, vez ou outra, tema de artigos em alguns eventos, ainda é pouco discutida no conjunto dos periódicos da área. É preciso dizer, por seu turno, que não obstante a vinculação do periódico com a área de Administração, buscamos refletir sobre a vida social organizada e, assim, estimulamos a realização de trabalhos demarcados por um eixo transdisciplinar, isto é, que se conforma nas intersecções entre múltiplos campos de conhecimento (Maldonado-Torres, 2016).

Além disso, encorajamos trabalhos forjados a partir do pensamento de fronteira, uma perspectiva metafórica para delinear conhecimentos marcados pelos hibridismos, oposições e contradições, múltiplas resistências, limites, possibilidades da mudança, trânsito entre-lugares, a invenção (Anzaldúa, 1987). Desse modo, a fronteira é também o que Mignolo (2017) chama de perspectiva epistêmica, que encerra uma política de produção de um conhecimento nos interstícios das lógicas de pensamento dominante e subalterno, conhecimento que seja potência para a transformação social. A fronteira é a linha concreta e discursiva que, de modo concomitante, separa e une a modernidade e colonialidade (Mignolo, 2010).

São bem-vindos trabalhos teóricos e empíricos que discutam:

- as articulações entre trabalho sexual e feminismos;
- o trabalho sexual e os usos (e não usos) dos espaços da cidade;
- os sentidos do trabalho sexual;
- o exercício do trabalho sexual e as diversas formas de organização política;
- políticas e práticas de governamentalidade no trabalho sexual;
- violências, resistências e afetividades no âmbito do trabalho sexual;
- economias materiais e simbólicas relacionadas ao trabalho sexual;
- aspectos ontológicos, epistemológicos e metodológicos nas pesquisas sobre o trabalho sexual.

A intenção é que os estudos problematizem acerca do trabalho sexual realizado por sujeitas e sujeitos cisgêneros e transexuais. Além disso, recomenda-se que os trabalhos produzam reflexões sustentadas por uma abordagem interseccional (Crenshaw, 2002; Curiel, 2006), isto é, engajada na discussão do trabalho sexual e o modo como este tangencia as subordinações de gênero, raça, classe, sexualidade.

Referências

Anzaldúa, G. (1987). Boderlands/La fronteira: the new mestiza. San Francisco: Aunt Lute.

Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10(1), 171-188.

Curiel, O. (2006). Los limites del género en la práctica política feminista y las visiones acadêmicas. In: El Género: ¿Una categoría útil para las ciencias sociales? Bogotá: Escuela de Estudios de Género y el Centro de Estudios Sociales de la Universidad Nacional de Colombia.

Juliano, D. (2005). El trabajo sexual en la mira: polémicas y estereotipos. Cadernos Pagu, 25, 79-106.

Legardinier, C. (2009). Prostituição I. In H. Hirata, F. Laborie, H. Le Doaré, & D. Senotier (Orgs.) Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: UNESP.

Maldonado-Torres, N. (2016). Transdisciplinaridade e decolonialidade. Sociedade e Estado, 31(1), 75-97.

Mignolo, W. D. (2017). Desafios descoloniais hoje. Epistemologias do Sul, 1(1), 12-32.

Mignolo, W. D. (2010). Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires: Ediciones del Signo.

Moira, A. (2016). E se eu fosse puta? São Paulo: Hoo.

Olivar, J. M. N. & Garcia, L. (2017). “Usar o corpo”: economias sexuais de mulheres jovens do litoral ao sertão no Nordeste brasileiro. Revista de Antropologia, 60(1), 140-164.

Pateman, C. (1993). O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Pheterson, G. (2009). Prostituição II. In H. Hirata, F. Laborie, H. Le Doaré, & D. Senotier (Orgs.) Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: UNESP.

Piscitelli, A. (2005). Apresentação: gênero no mercado do sexo. Cadernos Pagu, 25, 7-23.

Piscitelli, A. (2016). Economias sexuais, amor e tráfico de pessoas – novas questões conceituais. Cadernos Pagu, 47, e16475.

Prada, M. (2018). Putafeminista. São Paulo: Veneta.

Wijers, M. (2004). Delincuente, victima, mal social o mujer trabajadora: perspectivas legales sobre la prostitución. In T. Osborne (Ed). Trabajadoras del sexo: derechos, migraciones y tráfico em el siglo XXI. Barcelona: Bellaterra.


Modalidades de contribuição

Farol – Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade publica contribuições na forma de Capas, Artigos, Ensaios, Debates, Provocações, Entrevistas, Depoimentos, Resenhas (de livros, filmes, exposições, performances artísticas), Registros fotográficos e Vídeos. Os idiomas aceitos nas contribuições são português, inglês e espanhol, desde que estejam de acordo com a política editorial e as diretrizes para os autores. Para ter acesso às orientações gerais, acesse: https://revistas.face.ufmg.br/index.php/farol/index.

Submissão

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Prazo

As contribuições para o dossiê temático “Trabalho sexual no Brasil: uma discussão sobre direitos, políticas e práticas” se encerram impreterivelmente no dia 16 de setembro de 2019 (segunda-feira).


Informações adicionais

No caso de quaisquer dúvidas sobre este número especial, as editoras especiais devem ser contactadas: Profa. Dra. Ana Paula da Silva (ana51@uol.com.br), Profa. Dra. Andreia Skackauskas Vaz de Mello (andreiaskack80@gmail.com), Profa. M.Sc. Clara Luisa Oliveira Silva (claralosilva@hotmail.com) ou Profa. Dra. Letícia Cardoso Barreto (leticiacardosobarreto@gmail.com). No caso de dúvidas sobre o periódico em si, o contato deve ser feito com a secretaria editorial (farol@face.ufmg.br).

 

Prof. Luiz Alex Silva Saraiva, Dr.
Editor-chefe
Farol – Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade
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