CINEMÃO: ENCRUZILHADAS DE DESEJOS E SENSAÇÕES
DOI:
https://doi.org/10.25113/farol.v8i22.6858Palavras-chave:
Etnografia, Cinema de pegação, Interações homoeróticasResumo
Na apresentação da obra, o sociólogo Cristian Paiva destaca a importância do trabalho de Mário Fellipe ao revelar limitações ou zonas de não-dito das prescrições metodológicas do trabalho do sociólogo/antropólogo. O autor chamou, com acerto, de “etnografia sinestésica” a experiência/encruzilhada de afetação e de produção de pensamento, que constituíram seu fazer pesquisa no Cinemão.
É importante ressaltar que sua pesquisa se integra a um conjunto de etnografias já realizadas por outros autores que tematizaram o universo das práticas sexuais masculinas. O objeto de investigação eleito por Mário Fellipe e a proposta de uma etnografia sinestésica levantam um leque de questionamentos sistematizados por diversos autores e se inscrevem em um campo já bem consolidado de estudos das práticas de pegação masculinas como objeto de investigação socioantropológica (Barreto, 2017; Braz, 2010; Humpreys, 1970; Oliveira, 2016; Paiva, 2007; Perlongher, 2008; Vale, 2000; Diaz-Benitez, 2014).
A utilização dessa perspectiva sinestésica é ampla nos estudos socioantropológicos. Em “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ilhéus”, Goldman (2003) chega à conclusão que, somente, a partir de uma escuta e sensificação aos efeitos do contexto investigado, torna-se possível viver determinada experiência no mesmo plano que os seus interlocutores, sem necessariamente ser idêntica à vivência deles. Processo semelhante, onde o corpo torna-se sensível a escuta sensorial do fazer etnográfico, é descrito no trabalho de Csordas (2008).
Em sua etnografia sobre a feitiçaria, Favret-Saada (2005) apostou na expressão “ser afetado” como tentativa de dar passagem às intensidades específicas que atravessam a experiência de campo. Para a autora, “ser afetado” constitui na possibilidade de abertura do pesquisador para habitar um outro lugar, em geral, não significável, como condição primordial de uma experiência socioantropológica.
Em uma obra dividida em quatro capítulos, o sociólogo Mário Fellipe faz uma grande viagem e, nos leva com ele, pelos mundos e submundos do Cinemão, um espaço no qual as interações homoeróticas, e não só elas, se apresentam aos nossos olhos adaptados em meio a quase escuridão dos espaços. E nele, o que é margem no mundo externo passa a ser centro, como diria Bell Hooks (2019). Narrativas transgressoras e libertárias nas quais o desejo, o erotismo e a pornografia são capazes de nos fascinar e incomodar, além de desestabilizar discursos, retirando os efeitos morais. No âmbito performático do sexo, o olhar, o ouvir e o escrever emergem como uma missão nessa jornada investigativa.
Nos dois primeiros capítulos, “Entre sombras e penumbras: os labirintos de uma investigação” e “Por uma Etnografia Sinestésica: uma arena dos sentidos e sensações”, Mário Fellipe justifica o seu tema de pesquisa, apresenta suas dificuldades pessoais iniciais até estar pronto para o início de uma grande viagem etnográfica de sensações e sentidos. A visão é a protagonista do Cinemão, mas outros sentidos emergem. É a perspectiva sinestésica que toma forma ao longo do texto. A curiosidade por algo desconhecido gera medo e ansiedade às quais não são impeditivas de se fazer uma belíssima pesquisa. Entre nós, Roberto Da Matta (2010) chamou a atenção sobre a relativização em seu livro Relativizando: Uma introdução à antropologia social, mostrando em que medida o relativizar é constituinte do próprio olhar antropológico: o “outro”, outrora um ser distante, passa por uma atualização que abre o horizonte do pesquisador para a exploração de terras longínquas e exóticas ao mesmo tempo.
No terceiro capítulo, intitulado “Etnografia na Cidade: extensões do Cinemão”, o autor nos apresenta a cidade de Fortaleza, quinta maior cidade do país, local do seu objeto de investigação socioantropológica. E aqui faz-se importante falar da segregação socioespacial de uma parte da cidade, o Centro da Cidade, quase sempre presente em outras latitudes de outros centros metropolitanos, revelando-se outra face das relações perversas na cidade: o tratamento desigual dado às pessoas de acordo com o lugar que habitam e a paisagem que encarnam. A discriminação social emerge, explicitando às restrições ao uso pleno da cidade como espaço da realização da vida em sociedade. O Cinemão passa a ser uma floresta com encantos e desencantos a ser explorado pelos corpos dissidentes, passa a ser um espaço de novas possibilidades de vida e negociação de desejos e fantasias no qual muitas pessoas permanecem compartilhando diversas instâncias de suas vidas no segredo do privado. Nas conversas ou relatos de informantes, é possível encontrar homens ou contatos mais intensos ao longo do seu trabalho de campo – são os corpos dissidentes. São esses corpos, educados na família, na escola e nos ambientes e situações por onde transitam, que rompem, no seu sobe e desce no Cinemão, com as significações que compulsoriamente regulam os corpos, provocando por vezes a reterritorialização e o escape da captura da heterossexualidade compulsória, embora a heteronormatividade seja a estética predominante. O Cinemão se torna o armário das multiplicidades.
No quarto capítulo, intitulado “Vivendo o Cinemão: a experiência de um frequentador atípico”, ao longo de um ano de frequência, o pesquisador procura perceber os sentidos, escapando das sedutoras armadilhas moralistas, ao adentrar num terreno minado por complexidades, contradições e preconceitos. Inclui a descrição da entrada do Cinemão, o interior, as apresentações dos filmes, o quarto escuro, os prazeres transitórios, os corpos diferenciados, a efemeridade das relações, as tensões, as violências, os códigos de interação, as práticas reveladas e a diferenciação explícita entre interior e exterior ao Cinemão. Fluxos, movimentos e trânsitos rompem os limites sobre o que os corpos devem fazer ao desarticular os binarismos da masculinidade/feminilidade e da heterossexualidade/homossexualidade - as múltiplas configurações das coreografias corporais nos seus ‘vai e vém’ subvertem o uso convencional do lugar, no caso o Cinemão.
Neste livro, o conjunto de capítulos apresenta novas formas de se exibir e pensar a pluralidade do sexo, distantes das percepções já legitimadas pela heteronormatividade, assim como mostra que alguns tabus passam a ser desmitificados no Cinemão o qual é ressignificado como um espaço de prazer e subversão das identidades sexuais e de gênero, possibilitando o prazer em todos os corpos ao reconfigurar práticas sexuais marginalizadas. Como no filme A Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen (1985), a atração sai da tela, erotizando o deslocamento de posições de gêneros, o que envolve a possibilidade de configurar novos modos de relações (in)imagináveis. Se o olhar é o elemento primordial para o início de uma interação, penso que a leitura do trabalho do pesquisador Mário Fellipe pode nos trazer uma nova possibilidade de enxergar o outro porque “Os outros somos nós” (Bertho, 2008). Vamos ao Cinemão?
Referências
Allen, Woody (1985) A rosa púrpura do Cairo. Brasil. Distribuidora 20th Century Fox Home Entertainment. 10 outubro. 1 DVD 1h 22 min.
Barreto, Victor H. S. (2017) Festa de orgias para homens: territórios de intensidade e socialidade masculina. Salvador: Devires.
Bertho, Alain (2008) Os outros somos nós: etnografia política do presente. Canoas: Ulbra.
Braz, Camilo A. (2013) À Meia-luz... uma etnografia em clubes de sexo masculinos. Goiânia: UFG.
Csordas, Thomas (2008) Corpo/significado/cura. Porto Alegre: UFRGS.
Damatta, Roberto (2010) Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
Díaz-Benítez, María E. (2014). Algunos comentários sobre práticas sexuais e seus desafíos etnográficos. Apuntes de Investigación del CECYP, XVI, 13-33.
Favret-Saada, Jeanne (2005). Ser afetado. Cadernos de Campo, 13, 155-161.
Goldman, Marcio (2008). Os tambores do antropólogo: antropologia pós-social e etnografia. Ponto Urbe, 3, s.p.
Hooks, Bell (2019). Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva.
Humphreys, Laud (1970). Tearoom trade: impersonal sex on public places. Chicago: Aldine.
Oliveira, Thiago L. (2016) Engenharia erótica, arquitetura dos prazeres: cartografias da pegação em João Pessoa, Paraíba. Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil.
Paiva, Antonio C. S. (2007). Reservados e invisíveis: o ethos íntimo das parcerias homoeróticas. Campinas: Pontes, 2007.
Perlongher, Néstor (2008). O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Perseu Abramo.
Vale, Alexandre F. C. (2000). No escurinho do cinema: cenas de um público implícito. São Paulo: Annablume.
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