CHAMADA DE TRABALHOS - Dossiê Temático "Foucault e os Estudos Organizacionais"
CHAMADA DE TRABALHOS
DOSSIÊ TEMÁTICO
Foucault e os Estudos Organizacionais
EDITORES ESPECIAIS
Igor Baptista de Oliveira Medeiros (UNIPAMPA)
Claudia Simone Antonello (UFRGS)
Rafael Diogo Pereira (UFMG)
A proposta desse Dossiê consiste em abrir um espaço para contribuições das teorizações foucaultianas nos Estudos Organizacionais (EO). Muitas linhas de pesquisa que hoje se configuram como alternativas profícuas para a análise organizacional, como os Estudos Baseados em Práticas (EBP), a Teoria Ator-Rede (TAR), e os estudos sobre produção de subjetividade no trabalho têm amparo nas diversas teorizações elaboradas por Foucault.
Certamente, Michel Foucault foi um filósofo que deixou sua marca em nosso pensamento contemporâneo. Não é à toa que suas teorizações perpassam a pesquisa e produção do conhecimento em diferentes áreas do conhecimento. Sua forma de teorizar a partir de problematizações, colocando em questionamento o que se revela como dado ou evidente, possibilitou a formação de uma nova corrente epistemológica, abraçada a outros autores que, assim como ele, buscaram sua base filosófica em Friedrich Nietzsche.
Apesar de esses autores não buscarem uma definição epistemológica para si, visto que isso inibiria a própria forma movente a qual atribuíam ao pensamento, nas últimas décadas, consensuou-se chamar essa epistemologia que enfatiza as dimensões processuais, e não se centra na estrutura para explicar a produção do real e das relações sociais, de pós-estruturalismo.
O pós-estruturalismo se configura, a partir do pensamento foucaultiano, como uma propositiva para se pensar uma outra história e forma de se fazer crítica nos EO. De fato, observamos nos últimos eventos da área (CBEO e EnANPAD) inúmeros trabalhos que buscam inspiração em Foucault para contar outras histórias que circundam os atos de organizar.
Esse dossiê busca abrir espaço e encorajar os pesquisadores da área a explorarem uma outra noção de história, que não é hegeliana nem marxista, e que logo não imprime consigo uma crítica marxista materialista histórica. Ao contrário do pensamento marxista, e sua subsequente crítica hegemônica dentro dos EO; para Foucault, o problema não transita apenas pela exploração de classe, não podendo se resumir o mundo à luta entre aqueles que têm e os que não têm. A supressão da paixão, do desejo, em prol da eficiência denota tanto ou mais a nossa atualidade do que a exploração de classe.
Michel Foucault dirá que a grande limitação da explicação marxista para fenômenos totalitários é ignorar justamente a dimensão do desejo. É ignorar que o sistema não é só injusto, ele também é desumano, visto que ignora aquilo que é mais intrinsecamente próprio do homem: o nosso desejo, a nossa vontade.
Com Foucault, podemos explorar a noção do desejo a partir da constituição dos sujeitos, e do que ele veio a denominar da constituição de uma estética da existência. Para tanto, em seguindo na explicação dessa proposta de Dossiê, antes precisamos esclarecer outras teorizações foucaultianas que já introduzimos; a questão das correntes epistemológicas que frequentemente causam confusões nos pesquisadores atuais quanto ao pensamento foucaultiano: o estruturalismo e o pós-estruturalismo.
O desenvolvimento teórico do estruturalismo, principalmente na França, ao final dos anos 1950 e durante a década de 1960, “levou à institucionalização de um ‘megaparadigma’ transdisciplinar, contribuindo para integrar as chamadas ‘humanidades’ e as ciências sociais, mas o fez sob uma forma exageradamente otimista e cientificista”, centralizando a linguagem na vida cultural e social humana a partir de um sistema semiótico ou de significação (PETERS, 2000, p. 9). Em contrapartida, o pós-estruturalismo deve ser entendido como uma resposta filosófica ao status pretensamente científico do estruturalismo e à sua aspiração a se tornar um megaparadigma para as ciências sociais. O pós-estruturalismo deve ser visto como um movimento que, inspirado em Friedrich Nietzsche, buscou descentrar as ‘estruturas’, a sistematicidade e a pretensão científica do estruturalismo, “criticando a metafísica que lhe estava subjacente e estendendo-o em uma série de diferentes direções, preservando, ao mesmo tempo, os elementos centrais da crítica que o estruturalismo fazia ao sujeito humanista” (PETERS, 2000, p. 9).
Em se tratando de Foucault, por vezes ele se encontrou nesse limiar indecifrável entre processo e estrutura. De fato, pensando sua apropriação no campo da Administração e nos EO, em estudo realizado por Costa e Vergara (2012), dos 41 artigos publicados naquela década nos anais de dois dos mais representativos encontros científicos da área na época no Brasil (EnANPAD e EnEO) que referenciavam Michel Foucault, a grande maioria dos estudos não ‘categorizou’ o pensamento foucaultiano adotado. As pesquisadoras concluíram que as questões epistemológicas ainda não faziam parte do corpo de preocupações de grande parte dos pesquisadores brasileiros na área de Administração (COSTA; VERGARA, 2012). De lá para cá, os EO ganhou corpo e força nacionalmente, o que nos permite, em parte, corroborar com a crítica empreendida pelas autoras. Todavia, é preciso ressaltar que as ideias de Foucault não visam ser ‘categorizadas’, e nesse sentido, a falta de classificação nos artigos pode se revelar como algo benéfico em se tratando da abordagem múltipla do pensamento foucaultiano que se expandia incessantemente. Isso fica claro na fala de Deleuze (2008, p. 118), ao mencionar que um pensamento é como ventos que nos impelem, séries aleatórias de rajadas e de abalos: “Pensava-se estar no porto, e de novo se é lançado ao alto mar, como diz Leibniz. É eminentemente o caso de Foucault. Seu pensamento não cessa de crescer em dimensões, e nenhuma das dimensões está contida na precedente”. Todavia, entendemos que boa parte dessa falta de posicionamento epistemológico quando se utiliza de alguma teorização foucaultiana não se dá pelo conhecimento aprofundado do autor. Pelo contrário, há uma escassez de compreensão de todos seus vastos escritos.
Além disso, sabemos que Foucault tinha resistências em ser classificado, pois ao fazê-lo, se veria preso a uma episteme que o limitaria de pensar diferente, ou que pudessem pensar de formas múltiplas sobre o seu pensamento. Quando entrevistado já no último mês de vida, em maio de 1984, ele diz: “é verdade que não gosto de me identificar e que me divirto com a diversidade dos julgamentos e das classificações de que fui objeto”. E “como não é possível denunciar sua distração ou seu preconceito, é preciso se contentar em ver, em sua incapacidade de me situar, alguma coisa que tem a ver comigo” (FOUCAULT, 2004b, p. 227-228).
De fato, se há alguma invariante, ao longo de todos seus escritos, ela pode ser caracterizada com a noção de problema: tanto problematizando quanto perguntando por que algo se torna ou é declarado problemático para nós; modificando, assim, “a maneira de problematizar e mudando os próprios problemas, pode-se dizer que a invariante metodológica e temática em Foucault é a própria variação” (VEIGA-NETO, 2009, p. 91), a própria movente constituição múltipla da tripartite ontológica saber/poder/si.
Para fins teórico-metodológicos, então, Foucault complementa que sua atitude crítica não decorre, a pretexto de um exame metódico, da recusa de todas as soluções possíveis, com a exceção de uma, que seria a boa. Sua postura é de natureza da ’problematização’: ou seja, da elaboração de um domínio de fatos, práticas e pensamentos que parecem colocar problemas para determinado objeto de estudo. Assim, encontramos razões para questioná-lo, para pensar as relações das diferentes experiências com ele, sem buscar nele o princípio constituinte dessas experiências ou a solução que regulará definitivamente seu destino (FOUCAULT, 2004b).
Assim, pelo já exposto, um primeiro grupo de trabalhos poderia ser destinado à submissão de estudo que explorem:
- a contribuição da analítica foucaultiana para os EO;
- o espaço da crítica foucaultiana nos EO;
- contando outras histórias da teoria organizacional;
- arqueologias sobre as formações discursivas em torno dos EO e da Administração;
- as relações do sujeito com as verdades do discurso organizacional.
Sabemos que Foucault não falou ou problematizou sobre as organizações, contudo, o que ele faz hoje para a análise organizacional é uma propositiva de encarar a condução da vida em espaços organizacionais a partir de uma noção processualista.
A preocupação com a estrutura organizacional esteve presente em primazia nos EO, pois, ao longo do tempo, a abordagem mais utilizada para entender as organizações foi esta; a partir da noção de estrutura, sendo que, por muito tempo, organização e estrutura foram trabalhadas como sinônimos. Uma alternativa para pensar além desse determinismo estrutural dominante nos EO é considerar o pensamento foucaultiano enquanto uma abordagem processual da subjetividade centrada nas diferentes modalidades de relação consigo, que nos permite refletir sobre novas possibilidades morfológicas em torno da noção de organização e do ato de organizar (noção de organizing conforme Cooper, 1990).
A partir de “História da Sexualidade I: a Vontade de Saber” publicado em 1976, Foucault vai rever sua própria noção de poder disciplinar e irá imprimir uma crítica às teorias tradicionais de poder que o veem de forma puramente negativa, como algo que domina, incute, impõe e restringe. Ele elucida um caráter positivo do poder, do poder que produz a realidade, que vem de baixo e de inumeráveis lugares, por que se exerce em relações móveis e desiguais, dentro da complexa e densa teia social. Relações estas, então, de poder que se distribuem nos mais diversos pontos, atribuindo lugares desiguais e focos assimétricos de poder, fazendo-se a partir de objetivos e estratégias em conflito, no qual a subjetividade, a condição pessoal, as castas ou as classes dominantes são apenas alguns aspectos de grandes estratégias anônimas que constituem os lances de dados políticos. Enfim, ele nos revela que onde há poder, há resistência (FOUCAULT, 2009, p. 90-91).
Foucault percebe que em certas condições a força dos indivíduos e dos grupos tem o potencial de contestar os sistemas hegemônicos de poder, seja por modificá-los num lento e tenaz movimento diário, ou abruptamente, num movimento de transformação político-social de caráter revolucionário. Esse é o problema que empolga Foucault em seus últimos anos de vida, passando a estudar o papel das resistências ao poder, em todas as suas dimensões, na trama complexa das relações de poder. Seu interesse passa a ser os combates e as lutas inerentes às relações de poder, e não apenas as grandes articulações institucionais e políticas que formam as grandes estruturas de poder que persistem num largo espaço de tempo (BRANCO, 2015).
Assim, o estudo e a pesquisa nessa perspectiva consiste em um afastamento das explicações de ordem ideológica: é dar conta de como nos tornamos sujeitos de certos discursos, de como certas verdades se tornam naturais, hegemônicas, especificamente de como certas verdades se transformam em verdades para cada sujeito, a partir de práticas mínimas, de enunciados invisíveis, de cotidianas e institucionalizadas regras, normas e códigos. Pesquisar a partir de uma perspectiva foucaultiana denota também, e finalmente, “dar conta de possíveis linhas de fuga, daquilo que escapa aos saberes e aos poderes, por mais bem montados e estruturados que eles se façam aos indivíduos e aos grupos sociais” (FISCHER, 2012, p.112).
A tarefa filosófica de Foucault é propositiva e consiste em lançar as bases teóricas e metodológicas para se realizar novos modos de investigação do passado e do próprio presente. Como o filósofo faz questão de repetir, ao longo de seus escritos, sua questão maior é o presente: “Que o que eu faço tenha algo a ver com a filosofia é muito possível, principalmente na medida em que, pelo menos desde Nietzsche, a filosofia tem como tarefa diagnosticar e não procura mais dizer uma verdade que possa valer para todos e para todos os tempos. Eu procuro diagnosticar, realizar um diagnóstico do presente: dizer o que somos hoje e o que significa, hoje, dizer o que nós dizemos. Esse trabalho de escavação sob os nossos pés caracteriza, desde Nietzsche, o pensamento contemporâneo, e nesse sentido eu posso me declarar filósofo” (FOUCAULT, 2014c, p. 34, grifo nosso).
A propósito dessa função do diagnóstico sobre o que é a atualidade, Foucault analisa que ela não consiste simplesmente em caracterizar o que somos, mas, seguindo as linhas de vulnerabilidade da atualidade, “em conseguir apreender por onde e como isso que existe hoje poderia ser feito de acordo com essa espécie de fratura virtual, que abre um espaço de liberdade, entendido como espaço de liberdade concreta, ou seja, de transformação possível” (FOUCAULT, 2000, p. 325), para além dos estados de dominação. Aqui se evidencia a noção foucaultiana de poder que não se confunde com um estado de dominação em que não haveria espaço para liberdade. Segundo ele, quando um indivíduo ou um grupo social chega a bloquear um campo de relações de poder, "a torná-las imóveis e fixas e a impedir qualquer reversibilidade do movimento, por instrumentos que tanto podem ser econômicos quanto políticos ou militares, estamos diante do que se pode chamar de um estado de dominação” (FOUCAULT, 2004a, p. 266). Assim, podemos entender que, em tal estado, as práticas de liberdade não existem, existem apenas unilateralmente ou são extremamente restritas e limitadas.
De fato, são as relações de poder, que são múltiplas e têm diferentes formas, que podem atuar nas relações familiares, no interior de uma instituição ou em uma administração, entre uma classe dominante e uma dominada, relações de poder que possuem formas que lhes são comuns. Foucault esclarece que se estuda essas relações de poder, não é visando alguma teoria do poder, mas, na medida em que problematiza sobre como estão ligados entre si a reflexividade do sujeito e o discurso da verdade, ou seja, se sua questão norteadora foi entender, como o sujeito pode dizer a verdade sobre ele mesmo, parecia-lhe que as relações de poder são um dos elementos determinantes nessa relação. Dessa forma, o poder não lhe interessava como questão isolada e se, foi levado a falar da questão do poder, é na medida em que a análise política que era feita dos fenômenos do poder não lhe parecia ser capaz de dar conta desses fenômenos mais sutis e mais detalhados ao colocar a questão do dizer verdadeiro sobre si mesmo. “Se digo a verdade sobre mim mesmo como eu o faço, é porque, em parte, me constituo como sujeito através de um certo numero de relações de poder que são exercidas sobre mim e que exerço sobre outros. [...] eu não fazia uma teoria do poder, eu fazia história, em um momento dado, da maneira pela qual foram estabelecidos a reflexividade de si sobre si e o discurso da verdade a ela ligado” (FOUCAULT, 2000, p. 327, grifo meu).
Essas são as dimensões ampliadas no pensamento de Foucault ao final de sua vida, observando que há pontos no diagrama de poder que oferecem resistência, que dobram o poder, escapando, em parte, do processo de docilização. Há uma luta, então, uma tensão entre forças, de um lado o indivíduo que quer dar vazão ao seu desejo vivendo a sua maneira, do outro, uma série de dispositivos que tentam dobrar os indivíduos e controlar sua subjetividade e seu desejo (DELEUZE, 2013). Assim, alguns indivíduos conseguem, não menos que parcialmente, escapar das malhas assimétricas que constituem a diagramação social, pois, para Foucault, é impossível viver sem relações de poder, mas é possível aos indivíduos decidir como viver em relação a si mesmos e aos outros, levando assim a uma estetização da ética, enquanto um processo de criação e construção de técnicas singulares, em que o sujeito administre sua própria liberdade (HERMANN, 2005). Deleuze (1999) em relação a noção de dispositivo, considera-o como um conceito operatório multilinear, transversal, alicerçado nos três grandes domínios genealógicos já definidos por Foucault no conjunto de seus trabalhos: “Primeiro, uma ontologia histórica de nós mesmos em relação à verdade através da qual nos constituímos como sujeitos de saber; segundo, uma ontologia histórica de nós mesmos em relação a um campo de poder através do qual nos constituímos como sujeitos de ação sobre os outros; terceiro, uma ontologia histórica em relação à ética através da qual nos constituímos como agentes morais” (FOUCAULT, 1995, p. 262).
Dessa forma, o sujeito é compreendido por Foucault como um “eu” ético em relação consigo mesmo, entendido como transformável, como modificável: é um sujeito que se constrói, que se dá regras de existência e conduta (GROS, 2008). A ética consiste, para Foucault, no direcionamento da própria subjetividade reflexiva para si visando formas de se reinventar, de se elaborar a própria vida.
Portanto, o pensamento foucaultiano se aproxima mais da corrente pós-estruturalista, pois também prega o fim na dicotomia sujeito-objeto. Sendo a subjetividade descentrada e pulverizada, o sujeito não tem essência ou origem, pois, ao invés de ser origem, sua subjetividade está mergulhada em um duplo movimento de produção e efeito. O sujeito somente pode constituir-se eticamente quando há possibilidade de emergência de novas formas existenciais, denominado por Foucault de práticas de liberdade (SOUZA; SOUZA; SILVA, 2013).
Considerando essas outras contribuições foucaltianas para os EO, outro grupo de trabalhos poderiam ser submetidos com as seguintes temáticas:
- a noção de prática em Foucault: práticas de si, práticas de liberdade;
- analítica do poder e da sexualidade nos EO;
- analítica de dispositivos para compreender a realidade organizacional;
- constituição do sujeito em organização: produção de subjetividade no trabalho.
Referências
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Veiga-Neto, A. (2009). Teoria e método em Michel Foucault: (im)possibilidades. Cadernos de Educação, 34, 83-94.
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Prazo
As contribuições para o dossiê temático “Foucault e os Estudos Organizacionais” se encerram no dia 1º de julho de 2019 (segunda-feira).
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Prof. Luiz Alex Silva Saraiva, Dr.
Editor-chefe
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